Em tom ameno: os rapazes da Rua da Bahia

O grupo reunido em torno da Semana de Arte Moderna, evento realizado na cidade de São Paulo em fevereiro de 1922, nunca perdeu de vista a importância das publicações periódicas para a difusão e o debate de ideias. A sequência de títulos que fundaram bem atesta o lugar estratégico ocupado por esses impressos. A lista iniciou-se com Klaxon, mensário de arte moderna (São Paulo, maio/1922 a janeiro/1923), continuou com Estética (Rio de Janeiro, setembro/1924 a junho/1925) e foi seguida por A Revista (Belo Horizonte, julho/1925 a janeiro/1926).

A publicação foi idealizada pelos jovens que se reuniam no Café do Estrela, localizado na Rua da Bahia, uma das mais importantes da capital mineira, endereço do Grande Hotel, o mais luxuoso da cidade, do Teatro Municipal, de livrarias, confeitarias, cafés e charutarias. O periódico, comprometido com os ideais modernistas, foi o primeiro a circular para além do eixo Rio-São Paulo. Cabe ressaltar que as relações dos mineiros com os escritores paulistas iniciaram-se durante a Semana Santa de 1924, quando o grupo formado por Mário de Andrade, Olívia Guedes Penteado, René Thiollier, Gofredo da Silva Teles, Oswald de Andrade e seu filho, Tarsila do Amaral e o poeta franco-suíço Blaise Cendrars visitou São João del-Rei, Tiradentes, Belo Horizonte, Ouro Preto, Mariana e Congonhas do Campo. Ao passar pela jovem capital mineira, Belo Horizonte fora inaugurada em 1897, a chamada caravana paulista encontrou-se com os jovens escritores mineiros, entre os quais estavam Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava e Martins de Almeida, leitores atentos da produção de Mário e Oswald. Iniciava-se um diálogo mantido por intensa troca de correspondências, especialmente com o autor de Pauliceia Desvairada.

Em maio de 1925, a decisão de lançar A Revista, título escolhido por Drummond, estava tomada, como revela carta na qual o poeta comunicou a novidade a Mário de Andrade e solicitou colaboração, não sem expressar seus temores quanto à duração da empreitada: “Aqui em Belo Horizonte isso de revista não pega. Em todo caso, vamos fazer ainda uma experiência”1. De São Paulo, Mário remeteu capítulo inédito do seu Amar, verbo intransitivo, romance que foi publicado em 1927. O texto foi estampado logo após a apresentação, o que não deixa dúvidas quanto à importância de contar com o apoio de um dos autores mais representativos no campo do modernismo. A direção da revista ficou a cargo de Carlos Drummond e Martins de Almeida, enquanto a redação coube a Emílio de Moura e Gregoriano Canedo.

O número de lançamento abriu-se com programa intitulado “Para os céticos”, não assinado mas redigido por Carlos Drummond, que clamava pela renovação intelectual e saneamento da tradição, criticava a inação no campo da política e firmava profissão de fé nacionalista, contudo sem “repudiar as correntes civilizadores da Europa”, num tom conciliador e distante de arroubos iconoclastas. Na edição subsequente, nova apresentação de princípios em “Para os espíritos criadores”, também sem indicação de autoria mas desta feita redigida por Martins de Almeida, na qual foram retomadas questões relativas ao regionalismo, nacionalismo e cosmopolitismo, com maior acento nos desafios provenientes do campo da política.

Compreende-se que os textos programáticos de A Revista não poderiam ficar alheios a esses debates, que também invadiram a correspondência. Assim, por exemplo, ao tratar da relação nacional/universal, Mário de Andrade expôs sua posição em extensa carta remetida a Carlos Drummond em 1924: “Não existe essa oposição entre nacionalismo e universalismo. O que há é mau nacionalismo: o Brasil pros brasileiros – ou regionalismo exótico”. E insistindo na pluralidade, valeu-se de metáfora musical para explicitar seu ponto de vista: “O dia em que nós formos inteiramente brasileiros e só brasileiros a humanidade estará rica de mais uma raça, rica duma nova contribuição de qualidades humanas. As raças são acordes musicais. Um é elegante, discreto, cético. Outro é lírico, sentimental, místico e desordenado. Outro é áspero, sensual e cheio de lambanças. Outro é tímido, humorista e hipócrita. Quando realizarmos nosso acorde, então seremos usados na harmonia da civilização”2.

Publicado o primeiro número, Drummond apressou-se em criticar a colaboração – “é o que há de mais arca-de-Noé”, referência à presença de escritores tidos como passadistas, para retomar o termo em voga. De fato, nos seus três números, A Revista estampou, lado a lado, contribuições dos redatores e seus amigos, de nomes de destaque no movimento modernista – Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida, Ronald de Carvalho – e escritores consagrados do mundo literário mineiro – Magalhães Drummond, Alberto Deodato, Godofredo Rangel, Pereira da Silva, Wellington Brandão, Orozimbo Nonato, Carlos Góes, Juscelino Barbosa. Os elogios de Manuel Bandeira iam para os primeiros: “Viva! A Revista está muito boa (...). Gostei dos seus versos [de Drummond], dos do [Pedro] Nava, do João Alphonsus (...), das notas críticas do Martins de Almeida e de Emílio Moura”. E arrematava com aquele que talvez fosse o elogio mais desejado: “O Mário diz de vocês que é o grupo de modernistas mais forte que o Brasil tem”. Não perdeu a oportunidade de aconselhar: “diplomacia nas relações com o passadismo mineiro”3. Diplomacia, aliás, não faltou, tendo em vista a mescla entre tradição e modernidade expressa na composição do índice. Esse, por sua vez, ocupava grande parte das capas, num registro que retomava projetos gráficos de revistas literárias e culturais brasileiras vigentes desde o século anterior.

O cuidado, porém, não impediu que a publicação fosse alvo de ataques por parte de Eduardo Frieiro, crítico que desfrutava de grande prestígio na cena cultural mineira e que valia do pseudônimo João Cotó. Ele voltou sua pena ferina, que beirava a deselegância, logo após o lançamento do impresso: “Há nesta cidade quatro ou cinco jovens estudantes que cultivam certo subproduto literário, a que o Sr. Mário de Andrade deu o nome de literatura pau-brasil. Ditos rapazolas formaram aqui uma pequena tertúlia de iniciados no objetivismo dinâmico do espírito moderno. Precisavam de um órgão. Veio o órgão, isto é, A Revista. A dizer a verdade, a insignificância do órgão não correspondeu à largueza da tarefa. Perrengue de físico e de miolo. Feitura gráfica roceira; em Grão Mogol não se faz nada melhor”4.

A despeito da avaliação mordaz de Frieiro, o periódico contribuiu para ampliar o alcance do debate em torno do ideal moderno. Além disso, revelou escritores vigorosos que, posteriormente, passaram a integrar o cânone literário brasileiro. Depois de A Revista, os jovens mineiros não mais poderiam ser ignorados pelos colegas do Rio de Janeiro e de São Paulo, isso a despeito de a publicação não ter ido além do terceiro número. Seu desaparecimento resultou da dispersão do grupo responsável que, por motivos diversos, deixaram a capital mineira.

No que respeita à presença dos paulistas, se é fato que a mesma atuou enquanto um acontecimento fundador para os responsáveis por A Revista, a passagem por Minas igualmente impactou os viajantes. Cecília de Lara insistiu nos efeitos da (re)descoberta de um Brasil multifacetado, propiciada pelo “contato material do grupo modernista original com a tradição brasileira viva, nas cores e formas da arte e da arquitetura colonial, remanescente em Minas”5.

Cabe lembrar que, pouco antes da partida, em 18 de março de 1924, Oswald de Andrade publicara o Manifesto Pau-Brasil, que colocou no centro do debate modernista a questão da brasilidade. Tratava-se de precisar as características peculiares do país, sua originalidade, tarefa urgente tendo em vista a necessidade de construir a nacionalidade e, portanto, a identidade brasileira, o que demandava analisar a trajetória histórica e cultural do país, tanto com vistas a propor projetos de futuro no campo político quanto uma arte própria, que não excluísse o diálogo com linguagens forjadas sob outros céus, numa postura distante da propalada pelos fascismos e por adeptos de regionalismos estreitos. A passagem por Minas, portanto, precisa ser colocada em perspectiva e tomada em sua complexidade, enquanto via com múltiplos sentidos e direções, do qual A Revista é uma das expressões.

Tania Regina de Luca


  1. Lélia Coelho Frota (org), Carlos & Mário, Correspondência completa, Rio de Janeiro, Bem-Te-Vi, 2002, p. 122. Carta datada de 20/5/1925.↩︎

  2. Carta de Mário de Andrade a Carlos Drummond de Andrade. Carlos & Mário, p. 70.↩︎

  3. Manuel Bandeira, Poesia e prosa, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958, v. II, p. 1388. Carta a Carlos Drummond, datada de 31/8/1925.↩︎

  4. João Cotó, “Brotoeja literária” in Avanti!, Belo Horizonte, 20/8/1925. Apud Plínio Doyle, História de revistas e jornais literários, vol. 1, Rio de Janeiro, Ministério da Educação e Cultura, Fundação Casa de Rui Barbosa, 1976, p. 88.↩︎

  5. Cecília de Lara, “A Revista: um novo elo na cadeia de periódicos modernistas” in A Revista, edição fac-símile, São Paulo, Metal Leve, 1974, p. 76.↩︎