Estética: “Cartas na mesa. Franqueza irrestrita. Sinceridade absoluta”

Estética publicou apenas três números, que integram a sequência de revistas associadas ao grupo que realizou, em fevereiro de 1922, a Semana de Arte Moderna. Cumpre destacar que se trata do primeiro periódico editado fora da cidade de São Paulo, sucessor de Klaxon (SP, 1922-1923). Teve como responsáveis dois jovens estudantes da Faculdade Nacional de Direito, ambos na casa dos vinte anos: Sérgio Buarque de Holanda e Prudente de Moraes, neto, que incluía a especificação em seu nome para distinguir-se do primo homônimo.

A correspondência entre o futuro historiador Sérgio Buarque e o escritor Mário de Andrade revela que os idealizadores inspiraram-se na inglesa The Criterion (Londres, 1922-1939), fundada pelo escritor e crítico T. S. Eliot, mas ainda não haviam encontrado uma denominação que lhes agradasse: “O primeiro número sairá em setembro e só falta para isso alguma colaboração e... título”1. De acordo com Prudente, em texto que acompanha a primeira edição fac-símile da revista, ao saber que os rapazes estavam a busca de uma denominação e que ainda não tinham redigido o programa, o escritor Graça Aranha sugeriu Estética e ofereceu-se para redigir a abertura. Vale lembrar que a proposta não era inocente, afinal, ele publicara em 1921 Estética da vida. O dado aponta para o senso de oportunidade dos fundadores, ainda que nem tudo os agradasse. Segundo Prudente, Sérgio preocupou-se em encontrar justificativas para o nome proposto, enquanto a colaboração de Graça era bem vinda, pois se tratava de “um nome de imenso prestígio a nos acobertar a aventura” e, sem rodeios, declarou: “Paris vaut bien une messe... e fomos à missa celebrada por Graça Aranha”2.

Dessa conjuntura, que colocou o escritor maranhense como padrinho da revista, resultou que a abertura, intitulada “Mocidade e Estética”, não se constituía num manifesto-programa, como era praxe nesse gênero de impresso, pois não se explicitaram as intenções e os objetivos da revista. Os redatores e a própria Estética só mereceram uma brevíssima menção nas quatro linhas iniciais do derradeiro parágrafo – “Armados desta força espiritual, os chefes desta revista, jovens de vinte anos, colocaram-se esteticamente para impávidos modernizar, nacionalizar, universalizar o espírito brasileiro” –, o que pode ser tomado como indicio de que o texto não foi escrito especialmente para a ocasião. Tal hipótese ganha força frente a inclusão do mesmo em Espirito moderno (1925), que Graça Aranha publicou, com a supressão do breve excerto citado, pouco depois, lançamento que foi anunciado na edição subsequente da revista.

O escritor também encabeça o índice do segundo número, o que pode sugerir que, de fato, Graça Aranha exercia forte influência intelectual junto aos editores. Porém, muitos anos depois, Sérgio Buarque revelou que o autor deveria figurar em quarto lugar no sumário, cabendo o posto de honra, ou seja, a abertura do volume, a Mário de Andrade. Entretanto, ao retornar da gráfica com as provas, Sérgio cruzou com Graça Aranha que, ao examiná-las, protestou. De nada adiantou o diretor explicar que fora feito um sorteio, indignado, Graça retrucou: “Meu nome na Europa e em toda parte sai em primeiro lugar e não entra em sorteio!”3. Em vez de expressar as preferências dos responsáveis na ordenação dos colaboradores, Sérgio acabou cedendo as imposições do autor de Canaã.

As mesuras, deferências e contemporizações não impediram que as tensões, já presentes entre os integrantes do movimento modernista, mas até então restritas ao âmbito epistolar, aflorassem nas páginas da revista. Ao remeter sua contribuição para o segundo número, Mário declarou a Prudente: “Na minha colaboração vai uma caçoadinha como Graça cujo Todo Infinito já me começa a amolar. (...) Se ocês acharem que isso pode fazer tristeza nele e prejudicar ocês ou a revista cortem a brincadeira. Não me zango, não”4. Mas não foi a tal brincadeira que desencadeou dissensões públicas, mas as duas resenhas, assinadas por Sérgio e Prudente: uma favorável ao romance de Oswald de Andrade, Memórias sentimentais de João Miramar, desafeto de Graça, e, sobretudo, as duras críticas dirigidas ao livro de Ronald de Carvalho, Estudos Brasileiros, autor que contou com a solidariedade imediata de Renato de Almeida e Graça Aranha.

A troca de correspondências bem indica o quanto a polemica rendeu, com acusações e ressentimentos de todos os lados. Manuel Bandeira chegou a declarar: “Pra mim Estética devia acabar. Aquilo nasceu mal, sob uma imposição [de Graça Aranha] que os rapazes [Prudente e Sérgio] não deviam ter aceito”5. Importa destacar, contudo, que a crítica voltava-se não aos antigos inimigos comuns, mas à produção de integrantes do grupo que, há pouco mais de dois anos, reunira-se no Teatro Municipal de São Paulo durante a famosa Semana. É bom lembrar que Graça Aranha, nome já consagrado, membro da Academia Brasileira de Letras, com a qual rompeu em outubro de 1924, portanto pouco depois do lançamento de Estética, foi convidado a pronunciar a conferência de abertura.

Na conjuntura de 1924, marcada pelo Manifesto da Poesia Pau-Brasil, que Oswald de Andrade lançou em março, as disputas em torno do ideal moderno adensavam-se. No terceiro e último número de Estética, que já não contou com a contribuição de Graça Aranha, foi a vez de Mário de Andrade apresentar a sua interpretação do movimento na famosa “Carta aberta a Alberto de Oliveira”, na qual esmaeceu a colaboração de Graça Aranha e asseverou que suas divergências com o escritor foram expressas já durante o evento em 1922, num investimento que acabou por ser endossado por parte significativa da historiografia acerca da Semana6.

Uma primeira cisão, de outras que se consumariam, ocorreu nas páginas de Estética, que acolheram importantes produções de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, mas também de Carlos Drummond de Andrade, levado pelas mãos de Mário, que propôs a Prudente: “Vocês aí conhecem o Carlos Drummond, de Minas? É um rapaz inteligentíssimo e de grande valor. Tenho dele aqui uns versos que valem bem a pena. Si vocês quiserem tiro cópia e mando para escolherem”7. A atuação de Mário não pode ser medida somente por suas contribuições que, aliás, figuraram em todos os exemplares. Além de apresentar Drummond, foi dele a iniciativa de enviar o livro de Oswald, Memórias sentimentais, para ser resenhado, de remeter poemas de Sergio Milliet e de indicar Joaquim Inojosa como representante da revista em Recife.

Dificuldades financeiras, que frequentemente rondavam as revistas literárias e culturais, acabaram por determinar a suspensão da circulação após o terceiro exemplar. Ao evocar a experiência de sua juventude, Prudente de Moraes, neto explicitou os objetivos de Estética: “apresentar o modernismo antes em seus trabalhos de reconstrução que de demolição” e “exercer a crítica do movimento de que participava (...). Cartas na mesa. Franqueza irrestrita. Sinceridade absoluta”8, objetivos que a publicação empenhou-se em colocar em prática.

Tania Regina de Luca


  1. Pedro Meira Monteiro (org.), Mário de Andrade e Sérgio Buarque de Holanda: correspondência, São Paulo, Companhia das Letras, Instituto de Estudos Brasileiros, Edusp, 2012, p. 64. Carta não datada de Sérgio a Mário, provavelmente escrita em maio de 1924.↩︎

  2. Pedro Dantas [Pseudônimo de Prudente de Moraes, neto], “Vida de Estética e não Estética da vida” in Estética, edição fac-símile comemorativa, Rio de Janeiro, Gernasa, Prolivro, 1974, p. VIII.↩︎

  3. Sérgio Buarque de Holanda, “Entrevista” in Maria Célia de Morais Leonel, Estética e modernismo, São Paulo, Hucitec, Brasília, INL, Fundação Nacional Pró-Memória, 1984, p. 171.↩︎

  4. Georgina Koifman (org.), Cartas de Mário de Andrade a Prudente de Moraes, neto, São Paulo, Nova Fronteira, 1985, p. 56. Note-se a ortografia de Mário, próxima da prosódia.↩︎

  5. Carta de Manuel Bandeira a Mário de Andrade, datada de 11/5/1925. Marcos Antonio de Moraes, Correspondência de Mário de Andrade & Manuel Bandeira, São Paulo, Edusp, Instituto de Estudo Brasileiros, 2001, 2.ª ed., p. 208.↩︎

  6. De acordo com Eduardo Coelho, “Estética: uma afirmação construtiva do modernismo” in Pedro Puntoni e Samuel Titan Jr. (org.), Revistas do modernismo, 1922-1929, edição fac-símile de Estética, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, Biblioteca Guita e José Mindlin, 2014, pp. 19-21.↩︎

  7. Georgina Koifman (org.), op. cit., p. 161. Na mesma missiva, Mário remeteu o livro de Oswald de Andrade: “vai um pouco atrasado, mas enfim vai. Si não der tempo pra uma nota sobre ele no 2º número de Estética, que ela saia no terceiro, não faz mal. No que concordo com vocês é que a Estética não pode ignorar o livro”. Carta não datada, mas que deve ter sido escrita em dezembro de 1924.↩︎

  8. Pedro Dantas, op. cit., p. XII.↩︎