Revista de Antropofagia: renovação e cisão

A Revista de Antropofagia, que começou a circular em maio de 1928, foi o terceiro periódico lançado em São Paulo pelo grupo responsável pela Semana de Arte Moderna, que já respondera por Klaxon e Terra Roxa... e outras terras. Tal como ocorrera em Terra Roxa, o novo periódico também dialogava com as propostas de Oswald de Andrade, ainda que as contribuições do escritor, em termos quantitativos, tenham sido modestas em ambas as revistas. Se, em 1924, o Manifesto da Poesia Pau-Brasil pautou a agenda modernista, em 1928 foi o Manifesto Antropófago, estampado no primeiro número, com réplica em bico de pena do quadro Abaporu, de Tarsila do Amaral, que emprestou nome e sentido à publicação.

Sem dúvida, os manifestos-programa do escritor desempenharam papel decisivo nos rumos da renovação estética e contribuíram para definir posições, na medida em que propuseram caminhos para enfrentar a questão da criação artística nacional e moderna a partir da problemática das tradições locais e de suas relações com a cultura europeia. Especialmente a recepção do segundo manifesto esteve envolta em não poucas controvérsias, devidamente registradas pelos contemporâneos, a começar por Mário de Andrade que, em carta ao poeta Augusto Meyer afirmou: “Só vi mesmo unanimidade no todos detestarem que nem eu o manifesto do Osvaldo. Que ele e a mulher Tarsila acham certo...”1.

A análise do índice da Revista de Antropofagia em sua primeira fase, que estendeu-se até fevereiro de 1929 e somou dez exemplares, surpreende pela enorme variedade de colaboradores, pertencentes a diferentes gerações e que assumiam posturas diversas em face dos sentidos do moderno. Tal quadro estava em consonância com a nota de Alcântara Machado e Raul Bopp, que fechou o número inaugural e na qual se reafirmavam as características da revista:

“Neste rabinho do seu primeiro número a Revista de Antropofagia faz questão de repetir o que ficou dito lá no princípio:

- Ela está acima de quaisquer grupos ou tendências;

- Aceita todos os manifestos mas não bota manifesto;

- Ela aceita todas as críticas mas não faz crítica;

- Ela é antropófaga como o avestruz é comilão;

- Ela não tem nada que ver com os pontos de vista de que por acaso seja veículo.

A Revista de Antropofagia não tem orientação ou pensamento de espécie alguma: só tem estômago.”

O mote foi retomado por Augusto de Campos para sublinhar “a indefinição teórica e poética” da revista nessa fase inicial e o fato de a antropofagia haver sido tomada, pela maioria, de forma bastante superficial e que não ultrapassava, no mais das vezes, a ideia da “cordial mastigação” dos adversários ostensivos do modernismo. É o que explica, na opinião do crítico, a presença de autores que, efetivamente, não haviam abraçado os pressupostos da Antropofagia enquanto movimento2.

Há vários indícios de que a incompreensão, o entendimento superficial ou a pura discordância em torno dos sentidos da antropofagia tensionavam cada vez mais as relações no interior do chamado “grupo paulista” e tornavam a ruptura iminente. Em entrevista para O Jornal, em 21 de janeiro de 1929, Oswald afirmou: “O Brasil não percebeu ainda o valor da Antropofagia, como descoberta filosófica e credo. Pensa que é troça. O Brasil é mesmo um país muito burro (falo do Brasil letrado)... A Antropofagia é o programa de salvação, é o nervo do dente nacional”3.

E, de fato, a revista forneceu os motivos imediatos para a ruptura entre Mário e Oswald, o que contribuiu para a instituição de novas e irremediáveis clivagens, além de poder ser considerada o canto de cisne da corrente de publicações renovadoras iniciadas com Klaxon. De fato, o problema da brasilidade constituiu-se no denominador capaz de unir, pelo menos ao longo da primeira fase do mensário, subcorrentes díspares que, entretanto, passaram a se digladiar frente à radicalização da proposta antropofágica, patente nos dezesseis números da segunda fase ou dentição, que vieram a público entre março e agosto de 1929. As mudanças ultrapassaram os aspectos formais – de revista para uma página encartada no Diário de São Paulo, de Assis Chateaubriand, jornal que começou a circular em janeiro de 1929 – e atingiram a própria concepção da antropofagia que, agora sem qualquer concessão, avocava-se o monopólio da vanguarda e do moderno e atacava, de forma impiedosa, os que não compartilhavam da sua radicalidade. Radicalidade também expressada do ponto de vista gráfico, com a exploração das possibilidades abertas pelo próprio suporte (página de jornal), tarefa levado a efeito por Geraldo Ferraz, responsável pela composição.

A direção, por sua vez, passou para as mãos de Oswald de Andrade, Oswaldo Costa, Jaime Adour da Câmara e Raul Bopp. O rol de colaboradores estreitou-se e multiplicaram-se os pseudônimos – talvez uma forma de ocultar a escassa colaboração. Aliás, os novos responsáveis buscaram obter adesões. No entanto, a despeito das muitas missivas solicitando colaborações, a maioria delas ficou sem resposta, indício evidente da profundidade da cisão. E a “vingança” contra os reticentes vinha estampada a cada semana na página antropofágica, que disparava petardos armados com vivaz comicidade – e que chegavam a descambar em ataques pessoais – contra os que se negavam a compartilhar da empreitada.

Entre os alvos estava a tríade verde-amarela, Plínio, Cassiano e Menotti, o último também chamado de Menotti del Piccolo; os católicos e seu líder Tristão de Ataíde, denominado de Tristinho de Ataúde e apresentado como diretor da revista A Horda [A Ordem], órgão catoli-comensal, dedicado à defesa dos interesses Ana-tomistas; o pessoal da revista Festa, então em circulação no Rio de Janeiro, em especial um de seus mais ativos membros, Torquato Tasso [Tasso da Silveira], cuja obra Alegria Procreadora [Alegria criadora] mereceu um anteanúncio; assim como os até há pouco amigos próximos: Alcântara Machado, Yan de Almeida Prado, que chegou a processar o jornal, e, especialmente, Mário de Andrade, atacado pelo seu catolicismo, seriedade e tom professoral.

Entre os motivos para o encerramento da segunda dentição, que ocupava uma página da edição de domingo, pesou a insatisfação dos assinantes, pouco afeitos às experiências vanguardistas. As dissensões no interior do grupo que fizera a Semana de Arte Moderna selaram o isolamento de Oswald, que daí em diante seguiria caminhos bem diversos dos trilhados pelos antigos companheiros.

Antonio Dimas
Tania Regina de Luca


  1. Lygia Fernandes (org.), Mário de Andrade escreve cartas a Alceu, Meyer e outros, Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1968, p. 57, carta datada de 20/5/1928.↩︎

  2. Augusto de Campos, “Revistas re-vistas: os antropófagos”, Revista de Antropofagia, Edição fac-símile, São Paulo, Abril Cultural, Metal Leve, 1975, s/p.↩︎

  3. Apud Joaquim Inojosa, O movimento modernista em Pernambuco, vol. 1, Guanabara, Gráfica Tupy, 1968, pp. 172-173.↩︎