Balizando o Modernismo

“(...) não é o leitor à procura de um jornal, mas o jornal à procura de um leitor”.

“Ao ente hipotético e incerto, para quem compomos esse quinzenário, como uma bandeja caipira, o repasto variado e suculento, que convém a um apetite virgem: crônica literária, crônica artística, crônica filosófica, crônica musical e teatral, ensaios de crítica, ensaios de história, criações de poetas. Novelas, romances, todos os gêneros, esperemos em Deus esse gênero pau (ennuyeux em francês)1, de que fugiremos como da peste.”

Com as mensagens acima, estampadas em sua “Apresentação”, Terra Roxa e Outras Terras, segunda revista modernista paulista, saiu em 20 de janeiro de 1926, uma quarta-feira, quatro anos após a revolucionária Klaxon, de 1922. Em formato de jornal, com folhas soltas, editou apenas sete números ao longo do ano de 1926, propondo-se quinzenal, mas com periodicidade irregular. E como anuncia na apresentação, o cardápio resultou variado, avançando para além do foco literário, com seções voltadas para teatro, pintura, música, esportes, além de matérias soltas sob os títulos: comentários, notas, entrevistas, reproduções de textos de outros jornais, etc.

O título Terra Roxa e Outras Terras diz respeito à ambição de abertura, segundo Cecília de Lara, “naquele momento, sugerindo a ampliação de horizontes para alargar-se ao estado de São Paulo à zona rural exatamente aquela que se caracteriza pela chamada terra roxa, adequada à cultura do Café”2. Curioso que, a despeito de seu propósito nacionalista, trazia já no título um substrato italiano, pois a fértil nova terra roxa recém descoberta no interior do Estado era chamada, inicialmente pelos italianos da lavoura, de terra rossa, em alusão à terra de cor avermelhada do solo.

Terra Roxa foi idealizada em 1925, mas seu primeiro número seria lançado em 20 de janeiro de 1926, com direção-geral de Antonio Carlos Couto de Barros (Campinas, 1896 – Campinas, 1966) e Antonio de Alcântara Machado (São Paulo, 1901 - Rio de Janeiro, 1935), enquanto a função de Secretário-administrador recaiu em Sérgio Milliet (São Paulo, 1898 - São Paulo, 1966).

Em 31/12/1925, Alcântara Machado escreve a Prudente de Moraes anunciando o surgimento de Terra Roxa e convidando-o a participar do jornal. Pede-lhe que envie um conto e, mais que isso, que assuma o compromisso de divulgar o periódico no Rio de Janeiro.

Registre-se que os três responsáveis por Terra Roxa foram modernistas de primeira hora, sendo que Couto de Barros integrou a comissão organizadora da Semana de 22, Sérgio Milliet participou da Semana e Alcântara Machado, muito jovem à época, cursava a Faculdade de Direito de São Paulo. Desde os 19 anos atuava como jornalista, trazendo textos em prosa marcados por traços modernistas, com períodos curtos e rápidos.

Observa-se que, salvo o advogado Couto de Barros, originário de Campinas, os demais eram paulistanos natos, sendo os três provenientes de famílias credenciadas na tradição oligárquica paulista, todos com formação superior: Couto de Barros e Alcântara Machado, bacharéis pela tradicional Faculdade de Direito de São Paulo e Sérgio Milliet formado em ciências econômicas e sociais pelas universidades de Genebra e de Berna.

Necessário introduzir aqui a figura central de Paulo da Silva Prado (1869-1943), bacharel pela São Francisco, figura emblemática no universo econômico, social e cultural do país e, provavelmente, o proponente do periódico e suporte econômico da empreitada. É de Paulo Prado o apelo, já na primeira página, para a aquisição de uma carta de Anchieta de 15 de novembro de 1579, anunciada na Livraria Maggs Bros, de Londres, no valor de 200 libras, equivalente a 30 sacas de café.

A despeito da ligeira discrepância de idade entre eles, pode-se admitir que faziam parte da mesma geração etária e cultural3, com vivências comuns na capital paulista, que no ano de 1926, de lançamento de Terra Roxa, atravessava efervescência econômica e demográfica, com a singularidade de metade de sua população, então de apenas 580.000 habitantes, constituir-se de estrangeiros imigrantes, italianos em sua maioria.

Nesse quadro, é lícito supor que a busca da nacionalidade já preconizada na Semana ampliara-se e diversificara-se quatro anos depois, em 1926, agregando e esmiuçando novos tópicos da representatividade nacional. Mais que isso, o periódico propõe-se à implantação de uma “nova tradição”, rompendo com exaltação de modelos do passado e erigindo figuras pouco lembradas na evocação da nacionalidade tradicional do país, em particular de atuação paulista.

A “paulistanidade” é o tópico centralizador da publicação, tema polêmico, que permeia as colaborações de Terra Roxa em vários níveis, tanto em discussões políticas quanto em discussões artísticas. A paulistanidade é então compreendida como a afirmação da superioridade do paulista4.

O assunto de maior destaque foi a compra da carta autógrafa do Padre Anchieta ao Museu Paulista, adquirida através de uma subscrição que equivalia a 30 sacas de café, solicitação que abre o periódico e perdura até o número 5, quando se anuncia a aquisição e a doação ao referido Museu.

Importa destacar que Terra Roxa, a despeito de não se propor a polêmicas e debates, singulariza-se, sobretudo, por quatro aspectos relevantes:

  1. Baliza a fragmentação do ideário do movimento e do grupo inicial modernista, pois sua veiculação se dá no curso dos debates de grupos antagônicos dentro do Modernismo, isto é, o grupo “Verde e Amarelo'', liderado por Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, e o grupo "Pau Brasil”, conduzido por Mário de Andrade e Oswald de Andrade.

  2. Materializa a busca das origens paulistas, por iniciativa de Paulo Prado, que propõe a aquisição de uma carta do jesuíta José de Anchieta, em leilão na Sotheby's da Inglaterra, propósito concretizado e documentado pelo jornal.

  3. Demarca a negação do futurismo de Marinetti, por meio do artigo sem assinatura “Gostosura da Terra”, estampado no número 6, que vem a ser claro manifesto anti-marinettiano. Nega a constante associação que os críticos do Modernismo sempre fizeram entre o movimento modernista no Brasil e o futurismo.

  4. Explicita a nacionalidade pelo viés da paulistanidade, evocando a afirmação da superioridade do paulista, insistindo na ancestralidade anchietana e bandeirante, no poderio econômico do café paulista, responsável por uma elite com "legitimidade" para ser dominante.

As dissidências afloradas envolvem Mário de Andrade, manifestas na última página do número 2, onde esse questiona artigo de Menotti del Picchia, já em oposição explícita ao grupo modernista inicial, por meio do artigo cujo título geral “Artigo de Menotti del Picchia – Resposta de Mário de Andrade”, aparece em colunas, lado a lado de “O Losango Cáqui” e “Feitiço contra o feiticeiro”, no número5.

Não obstante seu reduzido número de sete edições, Terra Roxa e Outras Terras figura como periódico de importância no processo de construção do Modernismo, permitindo desvendar aspectos pouco perceptíveis nos demais títulos do período, destacando-se a eleição da paulistanidade como ideário preferencial para definição dos novos rumos da cultura no Brasil.

O primeiro número foi publicado em 20 de janeiro de 1926 e o último em 17 de setembro do mesmo ano, sem que fossem dadas explicações para seu término. Tudo indica que o grupo se dispersou, em razão do cumprimento da entrega da carta de Anchieta.

Por fim, Terra Roxa, a despeito de esquivar-se de polêmicas, insere-se “numa etapa em que o Modernismo se amplia como conceito e se difunde espacialmente, com diversões e cisões. Nesse momento trata-se de discutir outro conceito – o de brasileirismo – forma vigente de nacionalismo que ultrapassa o âmbito da arte, segundo se infere da leitura do periódico”6.

Ana Luiza Martins


  1. Tradução de “ennuyeux”: aborrecido, chato, enfadonho, fastidioso, maçador.↩︎

  2. Cecilia de Lara, Klaxon & Terra Roxa e outras terras: dois periódicos modernistas de São Paulo, São Paulo, IEB/USP, 1972, pp. 39-40.↩︎

  3. Conceito de geração a partir de Jean Pierre Rioux e Jean François Sirinelli, La culture de masse en France: De la Belle Epoque à aujourd'hui, Paris, Fayard, 2002.↩︎

  4. Fabíola Picoli, Terra Roxa e Outras Terras: Modernismo e Paulistanidade, Campinas, dissertação de mestrado em Teoria Literária do Instituto da Linguagem, UNICAMP, 1997, pp. 7-8.↩︎

  5. Cecília de Lara, op. cit., p. 153.↩︎

  6. Cecília de Lara, op. cit., p. 143.↩︎